03 abril 2015

Opinião de José Carlos Faria

Sobre o Dia Mundial do Teatro
Instrumento de libertação colectiva
A celebração de qualquer Dia Mundial é sempre um apelo, uma chamada de atenção para algo que carece de ser apoiado e expandir-se com mais e melhores condições. Deles se deveria poder dizer que sucediam todos os dias e seriam portanto desnecessários e inúteis. Não é assim, como é sabido.


O Dia Mundial do Teatro assinala-se a 27 de Março, efeméride que, por mero acaso, acontece na data em que Heinrich Himmler, o chefe das SS nazis, assinou a ordem de construção do campo de extermínio de Auschwitz. Esta perturbante coincidência remeter-nos-ia porventura para aquela angustiada interrogação sobre se, após o confronto com a barbárie do Holocausto, ainda seria possível a Poesia, ou então para a pergunta que Brecht formulava – que tempos são estes em que falar de árvores é quase um crime porque significa calar tantas outras coisas?
O portão de entrada de Auschwitz ostentava o famigerado letreiro «Arbeit macht Frei» (o trabalho liberta), conceito que nestes escuros dias de desemprego e exploração, quase que volta a ser invocado nos mesmos termos por governantes e empresários, irmanados na defesa do grande capital. O Teatro, pelo seu lado, pressupõe sempre uma dimensão social e daí empenhar-se num combate contra o recuo civilizacional, dado enformar a democracia. Porém, se a par dela, numa Europa do Deus-Mercado, inimigo da memória, que vê na guerra uma oportunidade de negócios e abole cidadãos para gerar consumidores formatados, o Teatro vai sendo aniquilado, estamos perante um novo modelo de totalitarismo a instalar-se.
A presente conjuntura, de condição orgânica precária da nossa estrutura teatral, não fornece pois muitos motivos de festa mas, em contrapartida, dá aso a abundantes e justificadas razões de luta e protesto. O rol delas, em Portugal, também no sector do Teatro é, infelizmente, demasiado extenso. O Poder encara com desconfiança os colectivos de criação e o debate aberto por eles propiciado num espaço de discussão participada do social e do político. O Teatro é menosprezado como uma sequela e excrescência de Abril que importa erradicar, condenado à sobrevivência resistente e de acção contra a censura económica e o desdém de quem manda, dado não produzir lucro e por isso anatemizado como parasita «subsídio-dependente», condição infamante de que a banca, por mais milhões de verbas públicas que lá sejam injectadas, jamais receberá.
À obra teatral querem-na despromover à condição de produto, símbolo da alienação de trabalho no objecto comercializável: mercadoria. E se dantes era desprezado por não produzir, hoje poderá ser enaltecido justamente por não criar produtos. O Teatro não tem que «dar dinheiro»; tem sim que originar essa utopia fundadora e primordial do «Direito à Preguiça», a que se referia Paul Lafargue, o genro de Marx. Ao entendimento de serviço público artístico opõem exercícios contabilísticos que equivalem tão só a cortes orçamentais e de financiamento, fomenta-se o entretenimento comercial e as irrelevâncias pós-modernas que consagram apenas a frivolidade e o insignificante.
Crítica social
Apesar da dimensão criativa do Teatro se nutrir da dualidade entre criação e inovação, a tutela favorece «esta gentalha superficial e sôfrega de novidades/ que não gasta as botas até ao fim/ não acaba de ler os livros/ esquece de novo os seus pensamentos», diletância posta a nu por Brecht.
A gente de Teatro, mesmo quando próxima dos poderosos (sem nunca lhes pertencer) não teve com eles relações fáceis, tendo em conta que a protecção não era desinteressada. Gil Vicente, no seu último Auto, «A Floresta de Enganos», representado, em castelhano, linguagem cortesã, perante D. João III, em Évora, no Natal de 1536, dá-nos um retrato muito claro desses conflitos e até da ameaça da Inquisição nascente, cuja chegada se dera há poucos meses. O texto informa-nos que entra um filósofo com um parvo atado ao pé (ou seja, a projecção da dupla figura de autor e actor):
Filósofo: «Y, porque la reprehension
              A todos es enojosa,
              Me vi, en grande pasion,
              En carcel muy tenebrosa. (…)
              Solo por esto que digo
              Ataron ansi conmigo
              Este bobo que aqui veis.
              Que lo traiga desta suerte
              Al comer y al dejar,
              Hasta el morir. (…)
              Déjame, ora ser oído
              De esta gente cortesana
 
Parvo:    Mi Amo, aqui hablaré yo;
               Y cuando en casa estuvierdes
               Hablad cuanto vos quisierdes,
               Que nunca os diré de no,
               Aunque quebreis las paredes.»
O Teatro, desde as suas origens divertindo e ensinando, engendrou a crítica da sociedade em termos políticos, sociais e culturais, quer numa dimensão utópica, com o sonho, duplo espiritual da vida, quer na projecção do real e do seu reflexo no quotidiano – «Antígona» e o dever moral da desobediência civil; as peças de Aristófanes não se debruçam sobre o mito nem sobre os problemas eternos do destino humano, como na tragédia, mas directamente sobre a problemática político-social da Polis: na «Lisístrata» as mulheres fazem greve de sexo, recusando os seus favores aos maridos fanáticos da guerra, ou a reconquista da paz perdida em «A Paz»; as farsas medievais e o feroz ataque à venalidade do clero, à administração da Justiça, à corrupção; Shakespeare e a genial desmontagem dos mecanismos de poder e do sanguinário jogo dos poderosos; «Fuente Ovejuna», de Lope de Veja, expondo frontalmente que os valores morais da classe dominante se baseiam na opressão e fazendo substituir o falso sentido de «honra» da casta aristocrática pela ideologia popular da revolta e solidariedade; Molière (aprisionado devido às dívidas do seu «Ilustre Teatro» e sepultado na vala comum porque aos comediantes estava vedado o campo santo) com a denúncia da hipocrisia beata e bem falante dos Tartufos; Beaumarchais, antecipando com «As bodas de Fígaro» a saída de cena da nobreza e a chegada da Revolução francesa; Goldoni, forçado a exilar-se por na sua «Reforma» ter ousado mostrar o reacionarismo de patrícios e burguesia mercantil («Os Rústicos») ou elevar o povo miúdo dos pescadores de Chioggia ou dos pequenos largos venezianos à condição de protagonistas e não apenas figuras secundárias, como até aí; ou, nos Estados Unidos da América, terra onde, segundo nos dizem, mora a própria liberdade, o «Group Theatre», emergindo da Grande Depressão económica, opondo-se ao pérfido comercialismo, politicamente empenhado, e, como tal, desmantelado pelo Congresso, que o via e temia como perigosamente esquerdista…
Expressão da vida e das classes
 O Teatro passou a ser palco do Mundo, tido por incontrolável e ímpio. Santo Agostinho via nele a expressão mundana e diabólica da danação, contrapondo a inutilidade do divertimento profano à seriedade da catequese. O actor, possuído pelo disfarce, adquiria mil caras como o Demónio, e no mundo às avessas do Carnaval em que os loucos tudo podem dizer, o homem transformava-se em mulher, a mulher em homem e ambos em animais, ao arrepio da obra divina, tomada por padrão sublime e perfeito. O actor saía para fora de si e a Humanidade tornava-se maior do que si própria. 
O Teatro é o que dele resta, ser efémero. Exercendo fascínio e repulsa, a profissão de actor estava próxima da do gladiador e da prostituta, abrangida pelo desprezo generalizado que atingia o trabalho, actividade própria de escravos e párias, em contraste com a atracção por um modo de vida algo marginal que ia criando as primeiras vedetas. Roma institui a clivagem entre uma cultura de classes privilegiadas e a popular, considerada vulgar e inferior. Esta tensão manter-se-ia durante muitos séculos.
O luxo e a grandiosidade de aparato e maquinaria são exigências do espectáculo áulico e cortesão. A busca por um público popular levaria, no século XVI, as primeiras companhias profissionais, definidas como «associações fraternas» (uma espécie de cooperativas autónomas), a representar de lugar em lugar: – «Vamos a toda a parte e representar comédias é a nossa arte.»
Só em 1680, com o aparecimento da Comédie Française, é que o Teatro voltaria a ser um assunto de Estado, já não só quando o rei fazia anos mas sim para se apresentar em continuidade. O edifício teatral passava a ser um local para ver e ser visto, hierarquizado socialmente, submetido ao olhar do Príncipe, a visualização central e ideal, em função do qual o espectáculo se construía. Nesse teatro de classe, a alta burguesia capitalista imitava os tiques da aristocracia derrubada. O salão, espelho daquela sociedade, era o espaço idealizado para o palco ocupado por divos e prima donas.
A oposição a este teatro burguês abriu caminho às grandes alterações estéticas do século XIX em busca de uma verdade mais funda para ser apresentada e de maneiras menos estereotipadas para conseguir esse resultado. No Teatro de Arte de Moscovo, Stanislavsky desenvolve um método que marca o caminho do actor em direcção à sua personagem e abraça o realismo cénico e psicológico ao encenar as peças de Tchekov.
Por sua vez, no século XX, verifica-se uma explosão de códigos em que cada experiência passa a valer por si e se auto legitima. A expressão política e social vai ser posta em cena por diferentes vias experimentais: o expressionismo alemão, preocupado com a guerra e a opressão do capitalismo, mas incapaz de ultrapassar genéricas proclamações humanitárias; a energia da prática teatral do jovem teatro de vanguarda soviético (cujo impacto perdurou muito para além da padronização mais tarde posta em marcha), com Meyerhold, Tairov, Vakhtangov, Efreimov, adoptando o palco como plataforma de trabalho, o cenário-máquina, recorrendo ao circo, aos coros, às manifestações de massas, aos «jornais vivos» que o Exército Vermelho em campanha já encenara, o ProletKult de Mayakovsky e Eisenstein e as influências exercidas sobre o Teatro Proletário de Piscator, um teatro-documento de agit-prop; a exposição do funcionamento dos mecanismos sociais; o convite à capacidade crítica do espectador e ao «prazer do conhecimento» no Berliner Ensemble; a busca da emancipação de um público popular através de um repertório de clássicos e contemporâneos com as digressões pelas aldeias de Espanha com o La Barraca de Federico Garcia Lorca, apoiado pelo governo da Frente Popular; ou os espectáculos, em Paris, para públicos de operários e trabalhadores, no Teatro Nacional Popular, dirigido por Jean Vilar, são alguns dos muitos exemplos…
Acto vital e profundo
Ao Teatro e a toda a criação artística se aplica aquilo que o poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade considerava ser «uma das grandes consolações da vida, e um dos modos de elevação do ser humano sobre a precariedade da sua condição».
Se, por absurdo, ao Teatro um dia lhe quiserem, mais uma vez, retirar o direito de cidade e encerrar os espaços onde se faz vivo, na alegria essencial da comunhão fraterna com o seu público, saberá ele por vias ínvias permanecer, rompendo pelas ruas, actuante, porque, qual erva daninha, brota, desobediente, do inesperado, fora do sítio que lhe destinaram. Se aos seus artífices pretenderem calar a boca e amordaçar a palavra, mostrar-se-á persistente, por gestos e olhares.
E se, por fim, porque os do Teatro têm o vício da crítica e do sarcasmo no corpo, mesmo que lhes amarrem as mãos, restarão os dedos, teimosos, a inventar e transmitir signos e sinais, a contar histórias, a revelar o não dito, o interdito. Porque, imprescindivelmente, o Teatro é um acto vital e profundo da mais humana liberdade e instrumento de libertação colectiva!