05 novembro 2011

Opinião

Uma identidade própria do dirigente associativo


Um dos aspectos mais graves da «crise» do clube assenta no facto de o dirigente associativo voluntário (o «carola» dos bons e velhos tempos) não afirmar, com suficiente firmeza e lucidez, a autoridade democrática de que está investido a partir da eleição dos seus pares. Com demasiada frequência, o dirigente aceita a posição miserabilista e assistencialista em que o colocam para melhor o controlarem, sem procurar sacudir uma acção de tutela [realizada em 1.ª instância pelo Poder Local e, depois, pelo Central].

Por outro lado, confundem posições e funções e colocam-se em situações que fazem deles autênticos «funcionários» ao serviço da massa associativa [perdendo, por isso, o seu estatuto de «actor» da democratização] ou dos próprios poderes públicos [quando se constituem elementos integrantes dos sectores políticos que estão no poder, ou então, como abstencionistas, o que obedece à mesma lógica]. De facto, por vezes, assumem um carácter polemizador e contestário excessivo, de carácter hipercrítico [quando pertencem às forças políticas da oposição] que, pela sua falta de maturidade, ou pelo sectarismo e irrealismo, inviabilizam a estruturação e execução de qualquer projecto de carácter comunitário, antes envolvendo-se em quezílias e querelas de vizinhança sem qualquer sentido e que, sendo características do passado, hoje já não se podem manter.

A crise da «carolice» compreende-se com maior facilidade quando se compara a realidade dos factos com aquilo que é desejável. No sector desportivo a contradição entre estes dois termos não pára de aumentar. Agravada nos últimos anos pela visão descomprometedora do Estado e pela inevitável penúria de meios daí resultante, e pelo papel que lhe impõem e que aceita acriticamente, essa contradição acaba por caucionar a acção de forças que se posicionam abertamente contra o próprio movimento associativo.

Uma questão de reconhecimento

Convém esclarecer o sentido de crise. Não se trata de exigir ao Estado que tudo pague e que pague sem controlar. Com frequência os defensores do «menos Estado» argumentam, leviana ou interesseiramente, que é isto que o dirigente deseja. Convém desmistificar esta posição.

De facto, o que o «carola» pretende é que, perante o trabalho realizado pelos clubes e pelos seus pares, se avalie e reconheça a importância da contribuição que fornecem, desinteressadamente e sem retribuição material, para o progresso do desporto e, em última análise, para o da sociedade no seu todo. Esse reconhecimento impõe que o Estado aceite que há um mínimo de condições compatível com aquela função, que deve ser preenchido por si. Ao mesmo tempo não é aceitável que o Estado afirme que ao «dar» adquire direito a «dirigir», pois, de facto, quem é que dará mais?

Na verdade, o que está por detrás desta falta de reconhecimento é a recusa do Estado em tomar parte activa, tanto por meio de legislação adequada, como através dos meios financeiros técnicos e humanos, na criação de padrões de vida regulada por princípios eticamente reconhecíveis como humanizadores. O que está em causa, em última análise, é saber se o Estado deve intervir significativamente na liquidação de situações caracterizadoras da sociedade «dual» (a dos ricos e a dos pobres, que está em agravamento por mais que tal se negue) e na generalização do bem-estar social a todos os cidadãos.

A crise do dirigismo desportivo tem de se compreender no interior do quadro deste conjunto de questões. Como se vê, diz respeito, simultaneamente e, nalguns casos, de forma imbrincada entre si, quer ao Movimento Associativo quer os Poderes Públicos. O dirigismo desportivo popular tem de caminhar no sentido da construção da sua identidade própria para poder ser tomado em consideração como corpo social específico. Isto quer dizer que tem de conseguir definir as suas próprias necessidades e de as consubstanciar em processos de acção, de modo a poder reivindicar a sua participação nas decisões dos poderes públicos que determinam a existência do desporto que temos e condicionam a difusão da prática das actividades físico-desportivas pela totalidade da população, seja qual for a sua situação económica e estatuto sócio-cultural.

De acordo com esta perspectiva o «carola» tem de abandonar a sua atitude, quase generalizada, de lamentação constante e passar a actuar, em termos colectivos, de acordo com novas perspectivas adequadas ao tempo presente. O «revivalismo» de muitos dirigentes, e que constitui em si próprio sintoma e origem de certos aspectos da crise, deve ser liquidado quanto antes, dando lugar a uma nova atitude conscientemente responsabilizadora.

•A. Mello de Carvalho